Treinador de futebol é a profissão mais mal paga do mundo. E explico o porquê
Uma crônica sobre minha curta carreira à beira dos gramados
Meu filho de 11 anos se inscreveu no campeonato interno de futebol de campo no clube da nossa cidade e pediu para que eu fosse o treinador.
Menti que andava ocupado demais com o trabalho e não conseguiria acompanhar tantos jogos durante a semana. A razão real da recusa é outra. Chama-se trauma.
Em 2022 assumi o posto com a inocência de um dinossauro que olha um cometa se aproximar e senta na varanda para ver o eclipse. Foi um massacre.
Um técnico de futebol precisa tomar muitas decisões em pouco tempo. Quem cansou? Quem sentiu? Quem foi pra noitada na véspera? (Ok, meu material humano eram crianças, mas índole é índole, e não tem perigo noturno que não comece com potes de sorvete e Netflix.
As perguntas prosseguem: Quem escalar? Qual a melhor posição para quem? O que explicar para quem entra? E para quem não entra (spoiler: os renegados CHORAM. Todos. E é preciso colocar o psicólogo em campo para convencer um perneta a não desanimar porque ele é uma arma secreta para o segundo tempo).
Junte-se a isso a pressão dos torcedores (no caso, os pais dos atletas) à beira do campo e o relacionamento (tóxico) com a arbitragem e a conclusão é que não tem salário que pague uma bucha dessas. Abel Ferreira ganha é pouco.
Quem já disputou campeonato interno sabe da pressão que é receber um passe em diagonal e mandar a bola para a lua. Não tem chinelada deixe tantas marcas na formatação do caráter.
Em ano de Copa a ansiedade é maior. Inclusive da Direção de Esporte, que na véspera do Mundial do Catar achou uma boa ideia fazer um ÁLBUM de figurinhas com o rosto de cada postulante a atleta com a autoestima do Cristiano Ronaldo e a finalização de um Patrick Barriga de Cavalo.
Enfim, pressão.
Para nossa sorte, nosso time foi avançando, avançando e chegou à final depois de uma classificação heroica, nos pênaltis, na semi.
Desse jogo lembro só de um menino que entrava em campo em ano bissexto pedindo para ser um dos cobradores. Ele era magro, despenteado e usava óculos de aro fino colorido.
-NÃO, disse o treinador, sem mais explicações.
Meus três escolhidos deram conta do recado.
Mantive a fama de mau, mas durante a semana não me saía da cabeça a carinha de cachorro deixado para trás na mudança.
E fomos para a final.
Festa. Arquibancada. Narrador profissional. Transmissão ao vivo no YouTube. Pais xingando o árbitro. Pais xingando o técnico que não xingava o árbitro. Sol. Calor. Hostilidade dos meninos do outro time. E tem CEO trabalhando sob o ar condicionado reclamando que lida diariamente com muita pressão.
Já no começo do jogo fizemos 1 a 0. Era só segurar. Mas tomamos o empate no último lance. Graças a um erro bizarro do zagueiro grandalhão que só sabia bicar a bola pra frente – e, bem no jogo mais importante, bicou pra trás.
Novo empate. Nova decisão por pênaltis.
Só que dessa vez o melhor atleta e cobrador tinha se machucado. O treinador em módulo trabalho voluntário teve de escolher às pressas um substituto.
De cara tirei meu filho da lista de possibilidades. Em parte porque ele se negou a treinar cobranças na semana que antecedeu o jogo. Em parte por pragmatismo: não queria vender a casa para pagar a terapia caso ele falhasse na grande decisão.
Olhei para meus comandados e lembrei do menino de óculos colorido. Um storytelling se formou: a história dessa vitória passa pela feição de piedade que esse jovem futuro atleta apresentou no último jogo.
Ele queria tanto bater e eis que a chance apareceu.
No meu roteiro, já imaginava o dia em que ele, vitorioso em campo e fora dele, me encontraria na rua, já envelhecido, e agradeceria por ter confiado em seu potencial quando ninguém acreditava.
-Você está preparado?
-Estou sim, tio.
-Certeza?
-Sim, certeza.
E então ele foi para a cobrança, com a minha convicção e a dele amarradas na chuteirinha número 20 (não sei qual é o número, na verdade).
E a história da consagração começou a se esfacelar quando ele chutou a bola com a mesma força com que sopraria uma vela de aniversário: nenhuma.
Foi um recuo para o goleiro que nos custou a taça.
Mal o juiz apitou e tudo se congelou naquele instante. Via algumas crianças (as inimigas) correndo felizes. E outras em colapso. Uma delas era meu filho, que caminhou até a outra ponta do campo com a camisa cobrindo o rosto e os olhos embotados de poeira e lágrimas.
Nem lembro se em algum momento na vida tive um fim de semana pior que aquele. Talvez os meus comandados façam a mesma pergunta uma bora dessas. Não é fácil ver parte da infância estragada graças a uma decisão ruim do treinador.
Mas entre a fileira de garotos em convulsão lacrimal só um não chorava. Era o zagueiro grandalhão, que se automutilava chutando e socando a trave onde minutos antes tomamos o gol por uma entregada dele.
E outro storytelling se formou, como numa bifurcação: ele deveria ser o batedor. Era daquela raiva de quem errou e quer vingança que eu precisava para garantir ao menos um fim de semana digno para aquelas crianças.
Tarde demais.
Meu filho pode insistir o quanto quiser: ele vai ter que chorar agora por outras tomadas de decisões erradas. Mas, em campo, não terá a assinatura do pai.
(Crédito da foto: Cesar Greco/Palmeiras)
Genial!
Hahahaha!