Trabalho e monogamia - parte 2
Cerimônias de encerramento de ciclos funcionam como ritos de passagem para novas fases da vida.
Em 1989 fui orador da minha turma na pré-escola. No palco, com os braços levantados, eu falava algumas palavras e meus colegas repetiam. Era mais ou menos assim:
“Eu prometo ser honesto, respeitar os mais velhos, cuidar dos mais jovens” e por aí vai.
Depois teve a formatura do ensino fundamental, do ensino médio, da faculdade e a festa de casamento. Na conta dá para botar ainda a cerimônia de crisma e a primeira comunhão.
Em nenhuma dessas celebrações te dão o selo de jovem adulto. Em geral você desce do palco como orador da pré-escola mais ou menos como sai da faculdade: cansado e direto para a casa dos pais.
Não existe um marco, diploma ou manual entregue por qualquer instituição ou figura de autoridade que diga claramente “bem, agora você alcançou a maturidade, é isso o que deve fazer e é isso o que esperam de você”.
Talvez essas recomendações sejam manifestadas, muito de vez em quando, como uma voz da consciência vestida de santo e pendurada numa orelha. Na outra tem um diabinho dizendo: “É seu filho que nasceu? Parabéns! Vamos deixar a mamãe aqui descansando e comemorar com os amigos no bar?”
É mais exato dizer que a noção de responsabilidade só vem mesmo em algum plantão de madrugada, quando você busca um café, olha para a porta de saída e resolve, em vez de fugir, dar meia volta e terminar o trabalho iniciado 12 horas antes.
Não me lembro de quando me tornei um adulto.
Lembro só que já tinha barba e estava soterrado de contas quando percebi que já não adiantava encher a cara madrugada adentro porque ninguém faria o trabalho por mim no dia seguinte. Já não tinha a casa dos pais para correr.
Mas da adolescência me lembro bem qual foi o rito de passagem ou despedida. Foi numa viagem em grupo para a praia em que um casal de amigos se separou.
Não era um casal no sentido estrito. Éramos jovens demais para reivindicar união estável. A não ser que algum juiz fora do eixo compreendesse que dividir o lanche no recreio configurava convivência pública, contínua e duradora com o objetivo de constituição familiar.
Mas aquela foi oficialmente a primeira instituição “casal” que vi se formar desde a escola. Embora viajássemos juntos, naquela idade a gente não tem assim tanto jeito nem tanta intimidade para perguntar ou falar sobre certos assuntos. Os meninos, principalmente, têm dificuldade imensa em se abrir ou demonstrar alguma dúvida ou fragilidade.
Por isso ninguém nunca soube que acordo os namorados fizeram para aqueles dias quentes de praias, passeios e festas. Lembro só que meu amigo sofria e suspirava. Eles, que não se desgrudavam nem na aula de matemática, de repente começavam a andar sozinhos. Ela fez amizade com um grupo de outra escola e ele passava os dias com o olhar perdido, como se procurasse alguém que não sabia quem era e menos ainda aonde ia.
Logo cedo ele se juntava a nosso grupo de amigos, íamos conhecer algum lugar, parávamos em algum boteco, escolhíamos a próxima festa e ríamos de tudo um pouco, inclusive de nós mesmos, porque é isso o que adolescentes fazem quando se juntam: riem e se entediam. Mas ele tinha alguma coisa que a gente ainda não tinha percebido. Seu namoro estava nas últimas e seu jeito de manifestar tristeza era suspirar. Então ele até ria e se entendiava com os outros amigos do grupo. Mas do nada ficava absorto, distante, triste que só. E suspirava.
Pois bem. Na vida adulta tudo o que fazemos é suspirar. E eu só fui entender o que se passava com aquele amigo quando atravessei também meu primeiro rompimento. Todos passamos por isso. E de um tempo pra cá comecei a manifestar o mesmo sintoma de um término de relacionamento. Em tempo: sou casado há 12 anos e até aqui seguimos bem, obrigado.
Mas busco no léxico das relações afetivas alguns significados que não encontro quando tento explicar ou entender o que acontece quando um vínculo profissional acaba.
Mais ou menos como meu amigo perdido naquela viagem para a praia, eu meio que virei o Charlie Brown do rolê, qualquer rolê, a ponto de já ter respondido mais de uma vez nas últimas semanas que caralhos eu tenho para suspirar tanto.
“Não tenho nada, por quê?”
“Não sei, faz duas horas que você só suspira e bufa, bufa e suspira”.
E então percebo que estou com o olhar parecido com o do meu amigo. Um olhar que só parece perdido quando tenta localizar alguém.
Daquela viagem para cá, a grande maioria dos amigos casou. Não sei quanto tempo aquele rapaz seguiu suspirando e até que a separação, confirmada assim que o avião pousou em nossa cidade, parasse de doer. Sei que ele também se casou e seguiu.
A grande maioria de nós, posso apostar, casou em regime de comunhão parcial de bens e em acordos monogâmicos. E trabalha em regime poligâmico para juntar bens com quem dividir.
Eu mesmo, desde que me tornei um adulto, tive só três relacionamentos fixos com o trabalho. O mais longo deles durou quatro anos. Não chegamos à terrível crise dos sete que estraçalha qualquer relação (embora tenha sobrevivido a ela no campo afetivo; por pouco, mas sobrevivemos).
Não faz muito tempo, alguém definiu como era viver em tempos bicudos em alguma rede social: era viver com saudade de quando a gente ouvia uma música, lembrava e/ou chorava pelo crush. Depois de adulto a gente ouve música e se deprime lamentando pelo Estado democrático de Direito ou algum outro item em desuso, disputa ou perigo. A dignidade do trabalho, por exemplo.
Na festa de Réveillon deste ano, não consegui ficar acordado para ver os fogos porque tinha corrido como um doido para entregar tudo o que precisava para dois empregadores diferentes. Quando terminei, só queria dormir. E dormi.
Nessa época do ano, sempre me pergunto como os adeptos do poliamor se viram para estar juntos durante as celebrações. Juntam todas as famílias numa festa só? Passam o Natal com um(a) parceiro(a) e o Ano-Novo com outro(a)? E se houver mais de dois parceiros(as?) Será que a pessoa deixa claro quem é titular e quem é reserva da relação e vai rezar com os pais antes do jantar? Ou cada um vai para um lado com seu vale night cantando não sei o que fazer com essa tal liberdade?
Um poligâmico clássico não cansaria tanto visitando as famílias das parceiras em cidades localizadas em pontas distintas do triângulo (ou quadrado) quanto eu cansei nos meus plantões entre uma festa e outra: um presidente se mandou, outro iria tomar posse sob tensão, e entre uma coisa e outra morreu o Pelé. Até a véspera do Réveillon eu não sabia se iria passar a virada com a família ou não porque tentei até o último minuto fazer virar uma pauta em que eu deveria subir num caminhão de militantes, cruzar um país conflagrado e assistir com eles à posse de Lula.
Em casa, não fizemos planos, não marcamos viagem, não compramos convites antecipados para festa alguma porque ninguém sabia se eu estaria com eles ou na estrada durante o dia. Minha companheira nem reclama. Sabe que esses são os ossos do meu casamento poligâmico com o trabalho.
Não consegui a carona e foi dormir a última noite do ano frustrado e preocupado por ter decepcionado alguém.
Como numa relação afetiva, o trabalhador poligâmico descobre que não são as pontas do amor e da liberdade que se equilibram em pratos de uma mesma balança. São as pontas da responsabilidade e o medo do esquecimento. Amar, num caso como no outro, é consequência.
Você pode produzir para mais de um lugar, mas não está livre para desaparecer ou fingir que não leu a mensagem que pode chegar a qualquer momento. Também precisa ter na cabeça, no caso do jornalismo, que os assuntos podem até ser os mesmos, mas as abordagens, não. Ninguém se relaciona da mesma maneira com outras pessoas, menos ainda com diferentes empresas contratantes.
Ruim com duas, pior sem nenhuma. Mas, antes de setembro, foram meus dois casinhos do trabalho que desapareceram. Um porque morreu. Depois de anos tentando alavancar os negócios no Brasil, a sede, nos EUA, simplesmente decidiu fechar as portas para o mercado emergente. Ao menos deu 30 dias para que seus colaboradores recolhessem os pertences e se despedissem uns dos outros (no meu caso, à distância) antes de fechar a porta de vez.
O outro “caso” mudou o mindset, cansou dos contatinhos e decidiu fechar a relação.
Um milenial que decide trabalhar com jornalismo é uma força de mão-de-obra em luto permanente porque não chega sequer à fase da barganha. Transita, como se girasse em falso, entre a negação e a raiva.
Essa incapacidade é resultado de uma espécie de mito fundador geracional (ou mito geracional fundador): nascemos numa transição entre o analógico e o digital e fomos treinados e orientados a enterrar algumas premissas que organizaram a vida afetiva e profissional de nossos pais. A monogamia, que os enjaulou, era uma delas. A busca obsessiva por uma sombra onde amarrar o burro e viver a mais estável e tediosa das relações de trabalho, fosse no serviço público, fosse em alguma empresa que poderíamos chamar de mãe, ou mesmo numa vendinha aberta pelo avô à espera de um sucessor, era outra.
A gente não queria só comida quando aceitou o primeiro emprego. A gente queria também diversão e arte. E as relações durariam até que outra opção parecesse mais divertida e mais disposta a vender nossa arte na praia, sem ressentimento, traumas, carteira de trabalho, convivência pública, contínua e duradora com o objetivo de constituição familiar. E também sem férias ou 13º. É o preço da tal liberdade.
O mito é que era essa a nova ordem e tudo bem.
Mas a real é que senti cada término de relação estável com o trabalho como uma morte. Não era só uma mesa, uma cadeira e um computador que eu deixava para trás quando decidia viver com outro empregador. Era toda a organização da minha vida social e minha rede de amigos. (Ou alguém faz amigos fora do trabalho depois dos 30?)
Eu sabia disso quando decidi nunca mais me casar com o trabalho. Não nos termos em que pudesse ser cobrado por exclusividade. Parecia um jeito certo de ganhar mais dinheiro sem precisar me amarrar a nada nem a ninguém. E de fugir dos riscos de apostar todas as fichas num mesmo projeto que poderia não dar certo.
Uma consequência de se abrir a outras relações é que, a certa altura, a margem para dizer não é reduzida. Deixamos de ser alguém que escolhe e começamos a ser escolhidos. Viramos a figura acessível para quem não conseguiu nada melhor no fim da noite. E nos tornamos o fetiche de pessoas que não teriam coragem de sugerir a mesma coisa para os parceiros num casamento dito oficial.
“Se eu falar ‘não’, será que vão me procurar da próxima vez?”, a gente se questiona antes mesmo de se perguntar se nossa família vai receber apoio caso, sei lá, a gente morra no caminho de alguma pauta? Qual a diferença entre ser enterrado como indigente ou só com o RG, sem qualquer crachá corporativo, se alguém morrer no trabalho? Não parece uma pergunta tão absurda quando a gente tenta entrevistar na porta de casa a família do sujeito investigado justamente porque andava armado e ameaçou matar alguém. Isso é o Brasil.
Mas então, se estamos nesse lugar, e se conhecemos nossos parceiros eventuais de trabalho apenas por redes sociais, se não moramos juntos, se estávamos livres para pegar geral no campo profissional e não juramos nem amor eterno nem fidelidade parcial, por que tenho andado como meu amigo, lá daquela viagem da praia, dos últimos meses pra cá?
Do que sinto falta se nem relacionamento aquilo era?
Sim, eu também sinto saudade de suspirar pelo crush quando ouço agora minhas músicas. E é nas contas que eu penso quando tenho vontade de chorar.
Um terapeuta atento sabe que isso só não é depressão, a última fase do processo do luto, porque millennial que é millennial não sabe o que acontece depois das fases da negação e da raiva depois da perda.
Como não dá nome às coisas, começa a achar deprimente demais admitir que sente falta, ciúme e um pouco de inveja de quem seguiu na turma, se vê presencialmente ou tem o título de cônjuge oficial com carteira assinada. Faria mais sentido se tivesse ao menos um bota-fora, no bar, ao fim do último dia. Sim, toda despedida é dolorosa, mas algumas pelo menos são palpáveis e têm nome. E os colegas de trabalho, dos últimos anos para cá, eram só avatares em um celular em grupos de WhatsApp que deixaram de existir ou fazer sentido.
Então do que sentimos falta?
Talvez seja melhor admitir que sentimos falta de algo que nem nome tinha.
É diferente se entristecer pelo fim das coisas que sequer começaram.
É como sentir falta de um lugar que saímos sem sequer ter entrado um dia.
Uma relação poligâmica pressupõe que uma pessoa possa amar e ser amada por mais de uma pessoa. Nessa balança cabe um pouco de tudo, inclusive limites e cuidados. Tem um conflito natural na coisa toda quando, em tese, podemos nos apaixonar por todo mundo, mas na prática é bom não se apaixonar por ninguém. Mas, enquanto somos jovens, não deixa de ser um esforço coletivo para ao menos minimizar as interdições que só tendem a se ampliar na vida adulta, quando o trabalho passa a ser um território quase exclusivo da libido (ou da sua aniquilação). É quando sentimos realmente saudade de suspirar pelos crushes. Talvez este banzo seja o indicador mais preciso do momento em que viramos adultos. Mais até do que quando olhamos para a porta de saída do trabalho e decidimos ficar até o fim do plantão.
No estado permanente de negação (inclusive de que experimentamos uma espécie de luto quando terminamos uma relação profissional, tenha o vínculo que tiver), uma das estratégias de autoengano de quem serve a todo mundo é supor que se vive em relações poliamorosas quando, na verdade, não nos relacionamos com ninguém.
Nas empresas para as quais servimos por um dia, dois, três meses ou dez anos, em encontros fortuitos e trabalhos específicos, não existe sequer registro de nossa presença nas catracas de identificação. Se um dia estivemos lá, foi só como visitante. Como o contatinho que se veste e se manda antes de escurecer porque não mora ali. Mora onde?