Terence Fletcher, o professor do conservatório interpretado por J.K. Simmons no filme “Whiplash”, é um dos grandes vilões do cinema contemporânea e não é díficil entender por quê.
Sob a prerrogativa de tirar dos alunos o que eles têm de melhor, ele faz da vida de todo mundo um grande inferno. Berra, ofende, humilha, constrange. Um dos alunos sai de um ensaio com as mãos sangrando até atingir a nota que aparentemente só o professor é capaz de ouvir ou alcançar.
O esforço para chegar à perfeição é tamanho que, ao longo do filme, passamos a desconfiar que a neurose do mestre é só medo de um dia ser ultrapassado pelos pupilos.
Um clássico.
Os gritos de Fletcher são os ruídos perceptíveis que quebram uma sinfonia tocada pelos acordes e pactos da comunicação não-violenta, uma espécie de vacina das grandes corporações para se proteger de processos por assedio moral e outros imbróglios judiciais. E que, por alguma razão, tentamos aplicar agora na vida privada.
Para quem cresceu num ambiente de berros, apelidos jocosos e xingamentos entre adultos, não sou eu quem vai reclamar dos novos tempos e das novas regras.
O mundo não ficou mais chato, como poderia atestar quem já não pode gritar. Mas ficou mais confuso saber quando estamos na frente de um filho da puta quando o filho da puta é educado e sabe se comunicar.
O tira-teima é quando enlouquecemos. E aí fica tarde para gritar de volta.
Outro dia ouvi a bronca de um pai adepto da novilingua porque o filho cuspia arroz na mesa do restaurante. Em vez de berrar, como um adulto regularmente disfuncional dos anos 1980, o requerente acariciou sorrindo os braços do réu e avisou que se ele fizesse aquilo de novo seria obrigado a matá-lo.
Deve ter funcionado, já que o helicóptero de arroz bucal guardou as hélices no mesmo instante.
Só fico pensando como aquela criança vai identificar, dali alguns anos, quando alguém está flertando com ela ou simplesmente pedindo licença para esfaquear seu ombro. O tom de voz é o mesmo. O olhar repleto de bondade também.
De uns anos pra cá figuras como professor Fletcher foram limadas do convívio em sociedade.
No lugar delas ficaram as pessoas que nos apunhalam chamando de querido ou querida. E dizendo que, apesar da merda homérica que fizemos, está tudo bem (eu nunca sei quando estou tomando bronca ou recebendo ordem sincera para relaxar quando alguém suspira e diz "está tudo bem". Complica um pouco quando a mensagem vem por WhatsApp).
Mas existem campos diversos em que a comunicação não-violenta é barrada no baile.
Pateta, o personagem boboca da Disney, era um bom sujeito até entrar no carro. Virava o que todos viramos diante do trânsito caótico. Sim: o trânsito é uma estrada liberada para nossos instintos mais agressivos. Lei da selva, eles dizem.
Outro campo onde a linguagem não-violenta passou longe de fincar raízes é o futebol.
Posso dizer por experiência própria.
Faz alguns anos que trabalho sozinho, em casa.
E as broncas que eventualmente recebo são tão veladas que só percebo que decepcionei alguém quando já faz mais de ano que ninguém me chama para novos trabalhos. Para o contratante, é mais fácil ignorar e deixar a relação morrer educadamente por inanição do que correr risco de receber alguma invertida em um tribunal de danos morais.
Mas no futebol assédio moral é licença poética. Deve vir dali a máxima de que rugby é um esporte de brutos praticado por cavalheiros e o futebol, um esporte de cavalheiros praticados por brutos. A bola rola suave, mas a custo da liberação dos instintos mais primitivos.
Quem já pisou em uma arquibancada sabe do que estou falando.
Quem já participou de um campeonato interno de clube, de qualquer lugar deste planeta, também.
De uns anos pra cá me meti em esportes para substituir as angústias que geralmente só conseguia rebater com álcool. Ou gritos. Dois anos depois, posso dizer que o rebranding deu bem certo.
Corro semanalmente distâncias que jamais pensei que conseguiria aos 40. E faço um tempo razoável nos 50m livres na natação.
Ao fim de um treino ruim, como em um dia de trabalho a ser esquecido, a decepção é minha comigo mesmo.
Na dúvida, ficam valendo as horas que passei em silêncio debaixo d'água ou ouvindo música enquanto corria pela manhã.
Mas esporte coletivo é outra coisa, e só me dei conta disso na quinta rodada de um torneio 35+ em que as pessoas são capazes de dar a vida, a mulher, os filhos e as amantes por um troféu de lata.
Fazia muito tempo que não disputava um campeonato assim, oficial. E não demorei para lembrar por que fiquei longe de moedores do tipo por mais de duas décadas.
Em campo, todo mundo se transforma em versões pioradas do professor Fletcher. E comprova a tese de outro professor, o Vanderlei Luxemburgo, segundo quem o medo de perder tira a fome de ganhar.
A minha se foi na quinta rodada, o que é bem curioso.
Quando brinco de bola aos finais de semana, noto que jogar futebol é mais ou menos como andar de bicicleta. A gente nunca desaprende. Algumas vezes voltei para casa com o peito estufado porque algum amigo do meu filho pergunta se eu ja fui jogador de futebol profissional no passado.
"Não fui", eu digo.
"Ah, para, fala a verdade".
Não é porque eles só têm 12 anos que vou desprezar o elogio. É preciso manter a magia nas crianças.
Mas campeonato é outra coisa.
É guerra.
Você domina uma bola e brotam adversários da terra para te arremessar para o alambrado. Alguns são do seu próprio time.
Eles te xingam quando você não sobe para o ataque. Xingam quando sobe. Xingam quando você tenta um passe longo. E xingam quando só toca de lado. E xingam (muito) quando você sai na cara do gol e escolhe o lado errado do pé para chutar. Aconteceu no domingo passado. O resultado, dali em diante, foi um bloqueio criativo, quase um pânico, típico dos alunos de “Whiplash”.
Diferentemente de outros esportes ou profissões, a decepção ali é coletiva, nada velada e exposta em tempo real.
É possível ver o olhar de pena de quem assiste ao esporro da arquibancada improvisada. E a fúria de quem preferirá passar a bola para uma freira, e não para você, no lance seguinte.
A vontade, quase sempre, é enfiar a cabeça e o resto do corpo em um buraco e só sair depois do apito final. Até lá os xingamentos e dedos na cara pipocam.
A tática da comunicação não-violenta é metralhada em cada gol enfileirado pelo adversário. A autoestima e a vontade de acordar na segunda-feira também.
Fico me perguntando onde foi que desaprendi a lidar com situações do tipo. E me lembro que não sei mais há muito tempo como encarar gritos ou feedbacks tão crus sobre minhas culpas e limitações. Não sem esmorecer. E olha que de situações-limite e pressões a vida já está repleta.
Nada que se compare a uma hora de futebol mal jogado, um esporte tão peculiar que ignora alguns pilares básicos da vida de esportista.
Dos atletas de fim de semana, pouco chegariam vivos ao primeiro terço de uma meia maratona. Outros se afogariam se caíssem numa piscina olímpica. A maioria está muito bem, obrigado, com as barrigas de chope e os medicamentos e estimulantes para rebater a ressaca da véspera.
Por alguma razão, nada disso faz diferença dentro de campo. Vence ali quem é capaz de empurrar a bola pra dentro sem tremer. E pra não tremer é preciso estar intacto na rodada seguinte, e na outra, e na outra, até que tudo se torne tão banal quanto abrir uma latinha de cerveja ao fim do jogo -- é o que todos fazem.
Ajuda, claro, saber dominar uma bola e passar sem grande esforço para o parceiro a dois metros de você. Mas para isso é preciso treino e tempo de jogo. E para isso é preciso aguentar o tranco e os gritos. E é preciso gritar também. E é preciso sublimar a decepção do lance antetior para chutar, com raiva, a bola e quem ousar cruzar o seu caminho no jogo seguinte.
É essa a matéria-prima do jogador de jogo grande. Mas para isso é preciso estar disposto a encarar o inferno por uma hora da semana enquanto a bola rola. Ou quase rola.
Nao sei se vai dar certo. A minha raiva eu transformei neste texto.
Ótimo texto, mas revisa antes de postar, pô!