Como o filme “Conclave” virou um spoiler da Igreja sem Francisco
Naquele encontro, arquétipos de figuras de poder contemporâneas se digladiam em torno de um posto cujo titular, nos últimos 12 anos, condenou e denunciou a dança da humanidade à beira do abismo
Por uma dessas ironias divinas (ia dizer macabra, mas os tempos…) o filme “Conclave” entrou em cartaz no streaming poucos dias antes da morte de Jorge Mario Bergoglio, desde 2023 papa Francisco, morto na madrugada desta segunda-feira, um dia depois da Páscoa.
Spoiler por spoiler, é provável que muitos dos dilemas talhados pelo diretor Edward Berger sejam replicados em tempo real, a partir de hoje, nos corredores do Colégio dos Cardeais – o “inferno na terra”, na blasfêmia em sotaque e ironia britânicos do cardeal Lawrence, interpretado por Ralph Fiennes (“O Paciente Inglês”).
O filme, como um conclave real, é um thriller psicológico que a certa altura vira thriller thriller. Ainda assim, vale uma missa.
Uma das razões é o dilema interno do protagonista, que tem duas certezas declaradas já no primeiro encontro com os pares:
1- ele não quer ser o próximo papa;
2- o Santo Padre, para guiar aquela Igreja, precisa ter menos certezas, mais dúvidas, mais capacidade de escutar, errar, e acolher os erros alheios.
O discurso é tão apropriado à ocasião que o torna um dos favoritos na disputa. E é aí que as certezas começam a se esvair.
Não estamos, afinal, diante de um paredão de Big Brother ou da escolha do próximo CEO de big tech, mas de uma figura entronada há dois mil 25 anos sob o dogma da infalibilidade. São Pedro puxa a fila com a chave agora em disputa.
Corta a cena e o cardeal aberto ao erro passa a caçar e a minar as candidaturas de todos os que falharam no caminho até a Santa Sé. A cada revelação, cai um pouco a crença dele de que a certeza humana é a argamassa do arbítrio. Até a discussão sobre diversidade entra em xeque – à medida que o cardeal africano, um dos favoritos, se revela mais violento e reacionário contra grupos sociais minoritários do que qualquer europeu. (O diretor, alemão, não deixaria passar essa).
O filme ganha força à medida que ficam evidentes as trincas tanto das certezas do decano quanto das estruturas da Capela. Lá fora o mundo pressiona as decisões como se não houvesse barreira numa sala, em teoria, hermeticamente fechada e sem contato com o mundo.
Mas o mundo lá fora, à beira da explosão, penetra em cada fresta de um mundo interno violado.
Difícil imaginar outro cenário no centro da Praça de São Pedro nas próximas horas.
Naquele conclave, arquétipos de figuras de poder contemporâneas se digladiam em torno de um posto cujo titular, nos últimos 12 anos, condenou guerras e o avanço do extremismo. Foi derrotado em todos os embates, mas não deixou de denunciar a dança à beira do abismo em que a humanidade se meteu.
O risco, a partir de agora, é ouvir do Santo Padre que o que acontece em Gaza morre em Gaza e tudo certo. E que os algoritmos que embaralham os mandamentos são anjos condutores do Paraíso.
Nas fraturas daquele encontro, ganha força quem desponta com uma cartilha do passado para enfrentar os conflitos do presente e do futuro. O argumento, incorporado pelo cardeal italiano Goffredo Tedesco, é que a Igreja se perdeu à medida que se afastou da linguagem e dos pontos de origem. Todos falavam a mesma língua, afinal, quando o telefone não existia e o latim era a linguagem de aplicação compulsória e universal.
Hoje, defende o candidato, há fragmentos e cisão em tudo, a começar pelos cantos das mesas dos cardeais onde o cardápio são as afinidades eletivas e geográficas de cada continente. Um sintoma, segundo ele, de uma Igreja que se abriu demais, dialogou demais, relativizou demais, dividiu e se dividiu demais.
Dito com um sorriso no rosto pelo mais carismático dos personagens, o convite ao passado chega a ser irresistível. Foi assim que líderes populistas prometerem o resgate de valores avariados com a fórmula do atraso. Tedesco também quer fazer a Igreja (Católica Apostólica Romana) grande novamente. Seria o cavalo de aposta de uma Casa Branca hoje (muito) interessada na escolha do próximo papa.
Ao menos no filme, ganha os eleitores não quem promete mais violência contra as violências em curso. Mas quem é minimamente capaz de desativar o discurso autoritário mostrando o básico: não se apaga um incêndio com mais pólvora.
Bergoglio escolheu o nome de seu papado em homenagem aos pobres. Na oração mais famosa do santo que o inspirou está um pedido: que é preciso levar a fé onde reinar a dúvida.
Francisco apareceu em público poucas vezes desde que retornou ao Vaticano após 38 dias de internação.
Ele estava em seu quarto durante os serviços solenes da Sexta-Feira Santa, mas apareceu na varanda e andou de papamóvel no domingo de Páscoa.
No caminho da basílica, encontrou-se em um hotel com o vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, um dos mais radicais integrantes do governo Trump.
Ele passava a Páscoa em Roma com sua família. Não deve retornar tão cedo.