'Anora', GenZ e os filhos pródigos: onde estão os adultos desta sala?
Num filme sobre (má) gestão de herança, fica evidente de onde vem a repulsa geracional às figuras de autoridade do mundo adulto. Mas é mesmo pra levar esses caras a sério?
O esporte favorito dos meus amigos 40+ é malhar representantes da geração nascida entre 1992 e 2010.
Nas rodas de conversa pipocam espanto e indignação com os jovens adultos da geração Z. A descrição, quase unânime, é a de que são uma ilha cercada por descomprometidos por todos os lados: com trabalho, estágio, faculdade, a casa própria, relações afetivas, casamento ou qualquer outro projeto de longo prazo que não seja a fase seguinte de Overwatch 2.
O estranhamento acompanha uma noção recente de vida adulta, que só começaria de fato depois dos 30. Antes disso o indivíduo é basicamente um moto contínuo do mantra “errei, fui moleque”.
Durante boa parte de “Anora”, vencedor do Oscar de melhor filme deste ano, o que vemos na tela é um quase deleite da geração millenial. Em cada bifurcação os personagens têm a chance de tomar uma atitude muito errada e prosseguir. É exatamente o que fazem. “Viu só como são estúpidos?”, diz parte da plateia, vingada.
Em sua versão atualizada de Romeu e Julieta, o diretor Sean Baker faz mais do que inverter a lógica shakespereana de jovens que se amam vindo de famílias que se detestam. Talvez fosse clichê demais colocar um herdeiro da oligarquia russa na mesma cama de uma prostituta nascida nos EUA e deixar para eles a administração das feridas remanescentes da Guerra Fria. Soou mais verossímil criar um amor proibido entre quem tem e quem não tem sobrenome. (Ani, afinal, tem parentes russos e transita na dualidade).
Baker parece atender a uma curiosidade quase mórbida de boomers e millenials: tá, a gente sabe que essa geração TikTok não vai a lugar nenhum porque não sabe abastecer o carro do pai sem pedir dinheiro (e o carro) do pai. Mas e se dinheiro não fosse uma interdição? O que eles fariam da própria vida?
A resposta está nas muitas falas que dialogam exatamente com o estereótipo que qualquer 40+ faria dos meninos de 20.
Ani é uma dançarina de boate de 23 anos que faz freelancer como prostituta.
E Ivan é um jovem herdeiro russo que tem dois grandes problemas: muito tempo e muito dinheiro. E que preenche a total falta de propósito na vida com bebedeira, tempo de tela e ideias para tapear o tédio. Tipo encher uma piscina com 20 litros de groselha e chamar os amigos para nadar.
Ani não é menos deslumbrada.
Ao ver em Ivan a chance de quicar numa mola propulsora de ascensão social, não pensa duas vezes antes de (atenção para as aspas) largar a “carreira” e a “família” que despreza.
Há vários momentos em que ela, como todo centennial, tem a chance de observar para onde vai e dá de ombros.
A certa altura o espectador fica confuso se ela não percebe o risco ou se está ciente e pretende seguir. Não é todo dia que você compra uma briga com a máfia russa e (quase) manda um deles para o hospital. Chega a ser tentador dizer que o desprezo ao risco é só sintoma (geracional?) de um prejuízo cognitivo. Ah tá.
Ani tem a chance de medir bem onde está se enfiando no momento em que Ivan abre o Google e explica de onde vem toda a fortuna que parece disposto a cheirar numa mesma festa. Fica evidente ali o desencaixe entre o acesso (fácil) à informação e a compreensão do contexto.
Ani dá de ombros para isso, da mesma forma que despreza o pedido da irmã para trazer leite para casa. Aos 21 anos, ela ainda se dá ao luxo de falar como uma menina de 12 quando quer dormir até mais tarde. A mãe está ocupada vivendo a quilômetros dali com o novo namorado.
Em dupla, os centennials supostamente apaixonados botam para rodar todo o asco que têm pelo mundo adulto. Fazem troça das relações familiares e dos apelos para que cresçam e apareçam e desfilam petulância diante dos grandalhões escalados para tutelar os pombinhos.
É aí que o filme ganha força.
Quando os pais de Ivan decidem dar um fim àquela farra – envergonhados não porque o filho é um imbecil, mas porque, no auge de uma bebedeira em Las Vegas (oi Ross, oi Rachel) ele se casou com uma menina sem sobrenome – o herdeiro faz exatamente o que se espera de um menino rico e mimado: espana e desparece.
Da metade do filme em diante o que vemos é o processo de amadurecimento à jato de Ani. Ela está sozinha. Ou melhor: sozinha e rodeada por representantes da máfia. Os (representantes dos) adultos naquela sala.
A virulência com que ela reage à tentativa de tutela é das melhores cenas do cinema recente. Numa inversão de papeis, ela dá um nó em todo mundo. Aos berros, pinta e borda à medida que percebe também que aqueles grandalhões indignados com a petulância juvenil são só versões bêbadas e cansadas de crianças igualmente incapazes de crescer.
Aqui cai por terra a ideia de que a imaturidade de jovens adultos está desacoplada da geração anterior. Como se fossem paridos em cápsula das esteiras da Apple.
Pois o desprezo aos marcos da vida adulta não brota por geração (perdão pelo trocadilho) espontânea.
Num filme sobre (má) gestão de herança, fica evidente que a repulsa às figuras de autoridade é resultado direto de um mundo de relações devastadas pelos personagens de barbas e cabelos brancos.
“O dia que você me der férias, 13º e folga remunerada eu vou levar a sério a sua escala de fim de ano”, diz Ani ao comunicar a sua (atenção, de novo, para as aspas) “demissão” de um lugar sem carteira de trabalho. O descompromisso é recebido com desdém pelo chefe – um cooptador de jovens recém-saídas (ou não) da adolescência treinadas para distrair os adultos de verdade que não estão em casa no fim de ano.
É mesmo para levar esses caras a sério?
“Cair fora” é o que jovens costumam fazer quando o mundo prestes a ser herdado está à beira da destruição. Isso desde que o mundo é mundo.
Na GenZ quem parece ter caído fora antes foram os pais. E talvez, sim, haja um ineditismo aqui.
Em uma das cenas, o padre responsável por vigiar o filho dos oligarcas esperneia numa lanchonete com jovens que não saem do celular enquanto ele pedea ajuda para encontrar o filho pródigo. E pragueja contra os degredados filhos de Eva incapazes de tirar os olhos do TikTok e demonstrar um respeito mínimo pelos mais velhos. Estão diante de um padre, afinal.
Bem, o padre desiludido da juventude é o mesmo personagem que abandona um batismo quando a barata começa a voar. E que escala o irmão alcoólatra para cercar Ivan quando a tragédia é iminente. Tudo a mando dos pais que terceirizaram a vigilância do menino para os bedéis de ombros largos. E que, por natureza, gerenciam o filho e os negócios da família alheia à sombra do Estado, o mesmo que eles vandalizam quando tentam subornar o guarda de trânsito e o juiz de vara da família.
Todos ali parecem obedecer apenas aos comandos de quem tem dinheiro para pagar as brincadeiras. Elas só ficam mais caras à medida que se envelhece.
A certa altura da trama, nós sentamos do lado de Ani e vamos à desforra vendo como os ditos adultos da sala se viram para resolver os B.Os que eles mesmos criaram. O filho rebelde que não quer nada com nada é resultado de tudo isso.
“Você é um adulto”, diz Ani ao futuro ex-marido quando ele volta da bebedeira de onde tenta adiar, por mais uma noite, a travessia da maturidade.
O menino de 21 anos fica quieto. Ele pode fingir que dá de ombros a tudo, menos ao dinheiro dos pais. Não tem amor que sobreviva ao risco de ser deserdado.
No caminho de volta Ani descobre que amar é ter cuidado – e isso fica evidente na figura de Igor, o ajudante dos capangas com quem ela cria uma conexão via abandono. Ele é o único que pergunta se ela tem frio naquela longa jornada noite adentro.
Não por acaso, tudo se passa no dia em que o rapaz sério e brutalizado completa 30 anos e ele desvia de todas as armadilhas que todo mundo na plateia estava convicta de que ele cairia – inclusive Ani.
Com uma avó doente e empobrecida para criar, Igor não pode se dar ao luxo de brincar de ser moleque. Ani ainda quase uma década para fingir e performar – enquanto for isso o que se espera dela.
Excelente leitura!